O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro
e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As
manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em
quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no
escuro.
Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe
vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da
ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia
guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:
– Vá pisar no
inferno!
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu
caminho. Os vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o
maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a
escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou
então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum
desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um
instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava.
Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado.
Parecia trem de carga o trem de Maguari.
Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no
penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego
baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão, dera um concerto
em Bragança. Parara em Maguari.
Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no
bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma
cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada.
Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo e
depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do “Trovador”. Ficou
quieto uns tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz:
– O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
– Não sei: nós estamos nos escuro.
– No escuro?
– É.
Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia
bem. Perguntou de novo:
– Não tem luz?
Bocejo.
– Não tem.
Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
– O vagão está no escuro?
– Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E
principiou a grita dele assim:
– Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que
não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior Dom
da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou berrando:
– Luz! Luz! Luz!
Só a escuridão respondia.
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram
dentro da noite:
– Que é que há?
Baiano velho trovejou:
– Não tem luz!
Vozes concordaram:
– Pois não tem mesmo.
Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é
bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem
a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está
incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará
valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é
amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega
fogo.
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um
mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
– Ele é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda
de música e discursos.
– Foguetes também?
– Foguetes também.
– Be-le-za!
Mas João Virgulino observou:
– Isso custa dinheiro.
– Que é que se vai fazer então?
Ninguém sabia. Isto é, João Virgulino sabia.
Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a
esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um
pedaço, jogou pela janela e disse:
– Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
– Quilo e meio de toicinho!
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o
chefe. Os instintos carniceiros se satisfazem plenamente. A indignação virou
alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado.
Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
– Quantas reses, Zé Bento?
– Eu estou na quarta, Zé Bento!
Baiano velho quando percebeu a história pulou de
contente. O chefe do trem correu quase que chorando.
– Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano velho respondeu:
– É por causa das trevas!
O chefe do trem suplicava:
– Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os
bancos.
– Aqui ainda tem uns três quilos de colchão mole!
O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou
por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava armação de
ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de
sua lavra chamada Às armas cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca
surrupiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de Maguari fungou na estação
de Belé. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe
muito pálido.
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram
cartazes. Era assim o título de um: Os passageiros no trem de Maguari
amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi substituído
porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias.
Diante do teatro da paz houve um conflito sangrento entre populares.
Dada a queixa a polícia foi iniciado o inquérito para
apurar as responsabilidades.
Perante grande número de advogados, representantes da
imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos
se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um
exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:
– Qual a causa verdadeira do motim?
O homem respondeu:
– A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos
vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e
continuou:
– Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem
revelou:
– Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente
recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.
Antônio Castilho de Alcântara Machado d'Oliveira
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